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Vamos entender melhor sobre os distúrbios relacionados ao Glúten

  • Foto do escritor: Izabel Lamounier
    Izabel Lamounier
  • 19 de out. de 2020
  • 6 min de leitura

Recentemente a dieta isenta de glúten tem se tornado muito comum na população geral. Nos Estados Unidos, cerca de 30% das pessoas tem limitado a ingestão dessa substância, sendo que apenas uma minoria tem diagnostico das doenças relacionadas ao glúten. Apesar do aumento recente dessas doenças estar relacionado a ocidentalização da dieta, aumento do diagnóstico e mudanças na produção e preparação do trigo, muitas pessoas têm restringindo sua dieta, sem indicação médica, podendo apresentar comprometimento nutricional.

O glúten é um conjunto de proteínas de reserva usadas por algumas plantas para nutrir suas sementes durante a germinação. É encontrado no endosperma das sementes de cereais como trigo, centeio e cevada. A fração proteica do glúten solúvel em álcool é chamada de prolamina e a insolúvel de glutenina. Ambas são ricas nos aminoácidos glutamina e prolina.

Os distúrbios relacionados ao glúten são heterogêneos, refletindo sua etiologia autoimune, alérgica e não autoimune-alérgica. A doença celíaca (DC), dermatite herpetiforme (DH) e ataxia ao glúten (AG) são consideradas autoimunes. A alergia ao trigo (AT) e a sensibilidade ao glúten não celíaca (SGNC) são consideradas doenças alérgicas e alérgicas não autoimunes.

Estima-se que os distúrbios relacionados ao glúten tenham uma prevalência global de aproximadamente 5%. Até duas décadas atrás, DC e outros distúrbios relacionados ao glúten eram considerados quase exclusivamente encontrados em populações europeias. Avanços no desenvolvimento de testes sorológicos sensíveis e específicos levaram a um aumento no diagnóstico de distúrbios relacionados ao glúten e ao reconhecimento de que essas condições são um problema de saúde global significativo. O cultivo de gramíneas antigas, como os progenitores do trigo e da cevada modernos, começou no Crescente Fértil do Oriente Médio há cerca de 10.000 anos. O cultivo dessas gramíneas antigas se espalhou lentamente pelo norte da Europa, o que coincidiu com o crescimento das civilizações mais antigas e, desde então, foram relatados sintomas em conformidade com os distúrbios relacionados ao glúten. Muito mais tarde, a mecanização da agricultura e, mais recentemente, o uso industrial de pesticidas, fertilizantes à base de nitrogênio e a modificação genética levaram à produção de uma grande quantidade de trigo, incluindo novos tipos de trigo com alto teor de glúten. Esses trigos ricos em glúten são usados ​​na indústria global de alimentos. Essas mudanças rápidas na quantidade e tipo de trigo consumido podem ser responsáveis ​​pelo aumento global na prevalência de distúrbios relacionados ao glúten. Em um curto período, em escalas de tempo revolucionárias, o trigo tornou-se uma das mais importantes fontes de alimento do mundo. Além disso, o uso de ingredientes como o fermento de padeiro, em vez da massa fermentada natural, reduz a degradação dos peptídeos de glúten imunodominantes. Essa mudança nas técnicas de cozimento, aliada ao trigo com alto teor de glúten, pode ser outro fator responsável pelo aumento da prevalência de distúrbios relacionados ao glúten nos últimos anos.

Entre os distúrbios relacionados ao glúten, a DC e a DH têm sido amplamente estudadas e o papel do glúten em sua patogênese foi claramente identificado. A DC pode se manifestar com sintomas intestinais e extra intestinais, incluindo inchaço, desconforto abdominal e fadiga. No entanto, a DH geralmente se apresenta com sintomas extra intestinais, como erupção com bolhas. Pacientes afetados por SGNC também relatam uma ampla gama de sintomas intestinais e extra intestinais relacionados à ingestão de glúten, como dor abdominal, mas a etiologia dessa condição é menos claramente compreendida do que a etiologia da DC e DH. A patogênese do SGNC é completamente diferente do DC. Além disso, a AT se apresenta com sintomas típicos de alergia, incluindo rinite, eczema e sibilos causados ​​pela atividade de anticorpos IgE contra o glúten e outras proteínas contidas no trigo. A regulação positiva de IgE pode causar apresentações gastrointestinais transitórias, incluindo náuseas e distensão abdominal. Embora diferentes distúrbios relacionados ao glúten tenham respostas fisiopatológicas específicas à ingestão de glúten, as mesmas manifestações clínicas podem tornar seu diagnóstico diferencial desafiador.

A SGNC se caracteriza por sintomas que em geral ocorrem pouco após a ingestão de glúten, desaparecem com a suspensão de seu uso e reaparecem horas ou dias após o retorno da ingestão do glúten. A apresentação “clássica” da SGNC é uma combinação de sintomas similares aos da síndrome do intestino irritável (SII), inclusive dor abdominal, inchaço, anomalias do funcionamento intestinal (diarreia ou constipação) e manifestações sistêmicas, tais como confusão mental, dor de cabeça, fadiga, dor nas articulações e nos músculos, dormência de pernas ou braços, dermatite (eczema ou erupção cutânea), depressão e anemia. Entre as crianças, a SGNC se manifesta com sintomas similares aos da SII, tais como dor abdominal e diarreia crônica, enquanto as manifestações extra intestinais parecem menos frequentes (o sintoma extra intestinal mais comum é cansaço).

SGNC e SII: uma relação multifacetada

A possibilidade de que a ingestão de glúten cause sintomas gastrointestinais similares aos da SII em pacientes que não apresentam DC foi confirmada por diversos estudos. Os autores Biesiekierski et al. relataram, em 2011, que o glúten causa sintomas gastrointestinais em indivíduos sem DC e sem SII pesquisados em ensaio randomizado, duplo-cego e controlado com placebo. Dos 19 pacientes (68%) do grupo de glúten, 13 relataram que os sintomas não tinham controle adequado em comparação a seis dos 15 (40%) pacientes que receberam placebo. Segundo uma escala analógica visual, os participantes pioraram de forma significativa com o uso de glúten, após uma semana, em relação a sintomas gerais, dor, inchaço, consistência das fezes e cansaço. No entanto, em estudo subsequente, o mesmo grupo de pesquisa chegou a conclusões diferentes com base nos resultados de outro ensaio duplo-cego, controlado com placebo, que incluiu 37 indivíduos com SII e SGNC relatada pelo próprio paciente. Os participantes foram randomizados para um período de dieta de baixo teor de carboidratos fermentáveis de cadeia curta e má absorção (FODMAPs) e depois expostos a um desafio com proteína de glúten ou soro. Em todos os casos as queixas gastrointestinais melhoraram sistematicamente durante a ingestão reduzida de FODMAPs, mas pioraram de forma significativa com as dietas de proteína de glúten ou soro. A lista de FODMAPs inclui frutanos, galactanos, frutose e polióis contidos em diversos alimentos, inclusive trigo, vegetais e derivados de leite. Os resultados levantaram a possibilidade de que o efeito positivo da dieta sem glúten nos pacientes com SII seja uma consequência não específica da redução da ingestão de FODMAPs, já que o trigo é uma das possíveis fontes desses elementos. No entanto, deve-se enfatizar que os FODMAPs não podem ser inteira e exclusivamente responsabilizados pelos sintomas dos indivíduos com SGNC, já que esses pacientes apresentam resolução dos sintomas com a adoção de uma dieta sem glúten, embora continuem a ingerir FODMAPs de outras fontes, tais como legumes.

Terapêutica/Orientação

É essencial estabelecer uma estratégia e um plano nutricional. Deve ser consultado um nutricionista com experiência na área para orientar um plano alimentar assegurando que os alimentos proibidos são substituídos por alternativas viáveis e só e apenas por períodos de 2‑8 semanas até os sintomas desaparecerem. Posteriormente será feita uma reintrodução gradual. É importante não esquecer que os FODMAPs têm um efeito de prebiótico natural, isto é, estimulam o crescimento de uma microbiota saudável no tubo digestivo, como bifidobactérias. As consequências a longo prazo de uma dieta baixa em FODMAP tem que ser considerada.

Torna‑se cada vez mais claro que as reações adversas ao trigo/glúten não são limitadas às mais conhecidas entidades clínicas, como a alergia IgE mediada responsável por quadros clínicos caraterísticos, de instalação rápida e, por vezes, com risco de vida, ou à tão atualmente discutida doença celíaca. Na realidade, existe um espectro de doenças associadas ao consumo deste cereal nos quais mecanismos não IgE mediados, eventuais mecanismos de ativação da imunidade inata ou até mecanismos relacionados com as propriedades físicas e químicas dos açúcares alimentares se encontram envolvidos.

O tratamento com dieta sem glúten pode melhorar de forma considerável a qualidade de vida desses pacientes, em relação aos quais há bem poucas certezas e muitos “buracos negros” de conhecimento. Considerando-se a elevada taxa atual de percepção da sensibilidade ao glúten e o possível efeito placebo de qualquer intervenção na dieta, a demonstração de uma relação clara entre a ingestão de glúten e o aparecimento dos sintomas por meio do desafio com glúten, duplo-cego e controlado com placebo, é uma etapa crucial no algoritmo do diagnóstico de SGNC.

MENSAGEM FINAL

O trigo tem na sua composição proteínas e açúcares com funções importantes para o nosso organismo, mas que, por vezes, se associam a doenças. Se experimentar sintomas de desconforto quando consome produtos alimentares com trigo, procure orientação profissional. Não faça o seu autodiagnóstico; em alguns casos, a alteração da dieta feita por si pode inviabilizar um diagnóstico.

Referências:

Catassi C. Gluten Sensitivity. Ann Nutr Metab 2015; 67(suppl 2):16–26

Ferreira F, Inácio F. Patologia associada ao trigo: Alergia IgE e não IgE mediada, doença celíaca, hipersensibilidade não celíaca, FODMAP. Ver Port Imunoalergologia. 2018; 26(3):171-187

Resende PVG, et al. Doenças relacionadas ao glúten. Rev Med Minas Gerais 2017; 27 (Supl 3): S51-S58

Taraghikhah N, et al. An updated overview of spectrum of gluten-related disorders: clinical and diagnostic aspects. BMC Gastroenterology. 2020; 20:258

1 Comment


rubens.trevisan
Oct 21, 2020

Gostei do texto, se fosse um video ia ficar super, super. Parabens.

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©2020 por Maria Izabel Lamounier de Vasconcelos.

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